
O DESAFIO DE LIDAR COM AS BIRRAS (Autora: Dra. Florência Fuks)
Essa é uma questão recorrente nos nossos consultórios e, de maneira geral, é trazida diretamente com a pergunta de como lidar com ela. Antes de ajudar a encontrar tal resposta, acho fundamental contar o quanto esse comportamento é “normal”, saudável e até bonito. Claro que todos brincam que eu acho bonito porque não é na minha casa, mas mesmo respirando fundo em casa, reconheço sua beleza. E porque é bonito? Porque a criança nessa fase está passando por um processo essencial de diferenciação. Após percorrer o primeiro ano de vida tão conectado aos pais e seus desejos, vivendo uma parceria em geral para ambos tão prazerosa, o bebê - agora uma criança - passa gradualmente a se reconhecer como um sujeito independente, capaz de fazer suas próprias escolhas. Mas essa nova e incrível possibilidade desencadeia um processo extremamente ambivalente. Brazelton, um pediatra e autor de muitos livros sobre desenvolvimento infantil, associa esse “salto” ao momento em que a criança conquista os primeiros passos e a partir daí, começa a viver o embate: "agora eu posso e consigo ir, mas será que eu quero mesmo?". E assim passando o dia frente a inúmeros questionamentos dessa ordem, a criança sem dúvida entra em uma crise - crise no sentido positivo, de viver um momento simbólico de grande aprendizado mas que requer um esforço psíquico muito significativo.
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Sendo assim, essa criança viverá e provocará inúmeras situações de conflito, exercendo e treinando esse novo lugar, autônomo, independente. A palavra “não” passa a ser uma de suas principais ferramentas nessa descoberta e novo posicionamento. E, pra muitas crianças, a ausência desse recurso, a falta de uma linguagem que permita transmitir seu pedido ou sua busca, a levará a "atuar" essa luta, começando a "bela" cena da birra.
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E nem sempre os pais estão atuantes na cena, muitas vezes a criança se frustra sozinha em uma exploração ou até em seus próprios pensamentos e.... lá vem o ataque.
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Com isso, um "consolo" pros pais é compreender o momento desafiante que seu filho vive e até entender isso como um bom investimento - já que alguns autores associam a ausência do negativismo a uma adolescência mais complicada, com maiores riscos; afinal estamos de fato falando sobre dois momentos com sua semelhança: a luta desse sujeito por se diferenciar e encontrar seu próprio lugar.
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Mas por fim, imagino que alguns de vocês também se perguntem: "Ok, que bom que isso é normal, mas como é difícil! Como podemos lidar quando chegam os ataques?"
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A minha sugestão é primeiro pensar como reduzir os seus desencadeantes. E a resposta parece simples: deixando essa criança atuar a sua nova independência, ser autônoma, fazer suas escolhas. Deixando, por exemplo, a casa à prova de bebês, segura para uma boa exploração. Não se preocupando tanto se ela não come todo o prato de comida ou se, eventualmente, ela sequer encoste na comida. Permitindo que ela faça escolhas, que opte por comer sozinha, que escolha brincar mais uns minutinhos antes de tirar o coco da fralda, que ela recuse um sapato porque prefere estar descalça e assim vai. Ou seja, reduzam as situações de conflito, quando possível.
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Claro que quando o impasse começou, nossa primeira reação é encontrar uma alternativa, uma distração pra aquele foco frustrante. E ainda bem que em geral isso funciona.
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A partir dos dois anos, nos famosos "terrible 2s", cabe muito bem a proposta dos combinados, dando valor à escolha da criança mas também estabelecendo limites fundamentais. "Ok, se vc não quer parar agora, pode brincar mais 5 minutos, mas depois vamos pro banho”; ou dar 2 ou 3 opções de roupa pra q ela própria decida o q usar; etc.
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Agora, ainda com muito jogo de cintura e escuta, algumas cenas de birra são inevitáveis. E quando chegamos a esse ponto, minha sugestão é que se dê um tempo para aquela criança se acalmar por conta própria. Dizer algo do tipo: “filho, desculpa, mas assim eu não consigo te ajudar. Quando você se acalmar, a gente conversa”.
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Muitos nesse ponto me perguntam sobre o famoso cantinho da reflexão e, do meu ponto de vista, nessa idade se o cantinho serve pra algo, seria basicamente só pra isso: dar um tempo para ambos, criança e cuidador e não para maiores reflexões. Agora, sem dúvida, uma vez que ela se acalme acho válido que o adulto se reaproxime e ajude a se reorganizar, e a entender que você reconhece o quanto aquilo é difícil para ela, mas que ficará cada vez mais fácil lidar com tudo isso. Agora, claro que nem sempre tudo sai como imaginávamos e aí... “A voz do monstro engole a voz da mãe”, como disse uma garotinha no filme "O começo da vida". E a vida segue!